um livro de quê

não tinha percebido, até agora, como 2020 conseguiu se enfiar em vários formatos, menos naquele que costumamos considerar o de um ano. essa massa disforme, composta de atitudes tão horríveis, além de tudo, evidenciou o que vem de dentro, inclusive os incômodos. aquela onda de não saber quem se é, mas saber do que, definitivamente, não gosta. um tempo de tentar entender. minha relação com leituras sempre foi muito entregue ao universo. as tentativas de seguir metas, desde o início condenadas ao fracasso, só disfarçavam a vontade de ter controle sobre alguma coisa nessa vida. ou um tipo de garantia de que iria continuar. não adianta, o que me importa mesmo é ter intimidade com a história. do livro, da leitura, da conversa.

lembro que no linha m patti fala muito de listas. preciso de listas pra organizar pensamentos. não são rankings, contagens ou qualquer coisa parecida. servem pra que eu possa lembrar e até perceber o caminho. essa daqui debaixo se transformou num tipo de guia, um álbum de fotos literárias, de quem eu pude ser, do que as leituras fizeram de mim. basicamente um mapa dos meus dias. é como consigo resgatar memórias de horas tão ansiosas, ainda que essas memórias, com certeza, não sejam confiáveis.

não sei fazer resenha, nem resumo. nem explicar nada. nem sentido no tempo.

com a fantástica vida breve de oscar wao (junot díaz) eu passei bons tempos. nem lembro de datas, só de como me senti apreensiva, mas íntima e por dentro. entendi como o espaço influencia, como o momento influencia. na última vez em que vi alguns amigos, meu aniversário em março, emprestei o livro a uma amiga, achei que ela enxergaria coisas parecidas. acho ela parecida comigo em comportamentos públicos. quando ela leu me perguntou porque eu tinha pensado nela. não consegui explicar. 

a casa das belas adormecidas (yasunari kawabata) foi uma escolha de júlia. ler com alguém é diferente. são mais possibilidades. todos os dias a gente conversava sobre os incômodos que esse livro pode causar. pedaço por pedaço. quantas jornadas podemos completar acompanhadas de amigos?

linha m (patti smith). aqui eu começo a lembrar de como podem acontecer as fases da nossa construção a partir do outro. no início da pandemia escolhi, intuitivamente, companhias que me deram a chance de tentar sustentar uma vontade de existir. com conversas estranhas. esse livro preferiu ser lido sempre à noite, pouco antes do sono chegar. lia pelo celular, no modo sépia, a luz apagada, vovó dormindo e bia conversando com amigos. sempre aceitei que ler livros digitais é desafiador, às vezes ruim, pra mim. disperso muito rápido, e esqueço. mas não desse.

minha querida sputnik (haruki murakami) é a continuação dessa sustentação de que falei agorinha. e patti smith fala um bocado sobre literatura japonesa. não sei se posso reproduzir a história, mas tenho imagens muito nítidas, simples e fortes aqui dentro. representações de sentimentos. lia com o dia claro, fora do quarto. comecei quando ainda pelo meio do linha m. em algum momento confundi os dois. a sensação de ter que lidar com tanta coisa. gosto quando são detalhes que me pegam. o da solidão foi o que mais entendi. também teve a ideia de que as pessoas podem ser tudo, podem ser nada, em lugares meio loucos. desde lá tenho esperado ansiosamente pela oportunidade de ler mais histórias desse senhor.
 
tendo à ficção científica, mas me esforço pouco. então, ter lido a mão esquerda da escuridão (ursula k. le guin) foi um deleite. não sei explicar, mas os livros, uns mais que outros, parecem estar dispostos a frustrar todas as suas expectativas quanto ao ritmo de leitura. até hoje ele tá ali na estante, marcado com etiquetas que indicavam a quantidade de páginas que eu leria no dia. deu em nada, e eu já esperava. esse livro tem alguma coisa nele que dá vontade de chorar. 

li a cabeça do santo (socorro acioli). lembro de ter passado bons momentos, realistas e fantásticos. lembro de ter pensado que gosto de livros que rendem conversas com meus avós. isso aconteceu aqui. a história de samuel com a barriga colada nas costelassocorro interligando as coisas. a amizade de samuel e francisco. umas bonitezas que emocionam de surpresa.


comecei a ler kitchen (banana yoshimoto) seguindo o caminho que haruki murakami abriu pra mim. é difícil de entender, ou conseguir estruturar de outro jeito, o que significam histórias contadas com tanta simplicidade. tanta que inquieta. tudo o que li enquanto estava com meus avós fez muito mais sentido aqui dentro. foi mais verdadeiro, mais despretensioso, e, talvez, por isso, mais significativo. kitchen foi uma história que fui conhecendo devagar, que não me cobrou muita coisa. pareceu sempre adequada ao momento da vontade de ler. um epub em espanhol, que não trazia referências de qualquer edição. a falta que senti depois de ler a última página...foi logo depois do minha querida sputnik, e acho que os dois me atingiram de um jeito parecido. talvez tenha sido a destreza original e sensível, que é certeira, de descrever sentimentos, sensações, momentos "comuns". também alguns incômodos.



com úrsula (maria firmina dos reis) fiquei pensando no lado intenso do romantismo, que descobri gostar demais. sei lá, ela descreveu do jeito mais bonito do mundo o ciclo da vida de uma planta que tem na frente da casa de vovó. sabe? de manhã as flores nascem nela. e de tarde, acho que por causa do sol, elas caem. meio murchas. acontece a mesma coisa no outro dia. e no outro. e no outro. eu adoro ver. desperta meu estado de espanto. de admiração. maria firmina dos reis colocou exatamente essa imagem, em poucas palavras, em uma das descrições de cenário. me deixou feliz. meu canal pessoal com ela. a partir daí fui percebendo como ela se apresentava no livro, como conseguia expressar de forma tão honesta e generosa sua visão de mundo. é uma história contada com todo cuidado. como é fascinante a capacidade que ela tem de personificar os elementos da natureza, de descrever seus movimentos encantados e a partir daí mostrar experiências tão dolorosas. destaque para o resgate que consegue fazer de memórias, como coloca a representação da diáspora africana e a caracterização de sua obra como abolicionista, sempre através de vozes tão significativas. dizem "voz singular"! grande vanguardista!


aqueles que abandonam omelas (ursula k. le guin) não é um livro, é um conto. tudo o que já ouvi sobre escrita de diferentes gêneros, aquilo de o que um conto, uma novela, um romance, precisam ter. até que tamanho podem crescer. talvez eu não estivesse atenta a isso antes, mas aqui entendi qual é a desse impacto. queria ler mais coisas dela. não lembro como soube do projeto cápsula (link do projeto cápsula), mas fiquei feliz demais. a cabeça não parava, as palavras só cresciam e cresciam na cabeça. é um dedo impiedoso na pior ferida.


uma amiga disse que eu ia gostar de vermelho, branco e sangue azul (casey mcquiston). foi um dos que li com ansiedade. em vários momentos me peguei pensando que precisava ler rápido, porque se não ia me chatear se precisasse continuar acompanhando a história por muitos mais dias. mas gostei de algumas coisas que me fez pensar. nessas eu geralmente vou atrás de alguém que me ajude a entender o que eu achei.

quincas borba (machado de assis) foi um livro que eu tinha por aqui há alguns anos, de uma coleção antiga da editora globo que sempre aparece em sebos. já na segunda metade do ano pensei "por que não?". entendi a necessidade de conversar com histórias e sabia que encontraria isso aqui. como ouvir o que o narrador queria me contar sobre gente cheia de problemas. meu negócio é saber das pessoas. fiquei pensando na vontade que tenho de doar livros assim depois que leio. 

o jardim secreto (frances hodgson burnett). assisti ao filme de 1993 há muito tempo com meus primos, pequenos na época. e foi uma sensação de estar alegre em família. a privilégio que sempre é poder enxergar através da perspectiva de quem é criança. mas acho que forcei com o livro. na metade fiquei com a sensação de que era muito longo. senti falta de uma mary mais protagonista depois da metade. talvez se eu não tivesse assistido ao filme ou se não estivesse numa fase tão rabugenta da minha personalidade, aproveitasse melhor essa leitura. pediu um pouco mais de esforço meu. mas as descrições sobre a natureza e os outros animais ao longo do livro, e principalmente mary descobrindo a existência desses seres e de seus métodos, aprendendo a contar histórias sobre eles, foi muito legal de ler. lembro de ter lido uma parte que falava sobre como alguns animais têm suas estratégias debaixo da terra logo quando passou no jornal uma reportagem sobre como, no pantanal, animais tinham morrido encurralados em suas tocas. 


ideias para adiar o fim do mundo
(ailton krenak) 
li depois que uma colega foi muito atenciosa compartilhando referências dela. tinha dito que lembrou dele depois de algumas coisas que falei. e acho que indicar trechos mais importantes não vem ao caso, porque não é um texto muito longo. mas ele tocou num ponto específico que me seguiu, um que me nego a esquecer. ailton krenak diz: o tipo de humanidade zumbi que estamos sendo convocados a integrar não tolera tanto prazer, tanta fruição de vida. de onde vem isso tudo com o que cada um se identifica agora? nas postagens de fim de ano vi uma resposta  muito certeira dele mesmo. não sobre a origem das coisas, mas sobre nossa reação. temos de ter coragem de ser radicalmente vivos, e não ficar barganhando a sobrevivência (do livro tolerância intolerante: de mal a pior).



do frevo ao manguebeat (josé teles) ah. esse. foi na terceira tentativa de leitura. fala de tantas, tantas coisas. da minha lembrança de querer ser jornalista desse mesmo jeito. de lugares em que nunca estive. de relacionamentos. de música. de quem consegue fazer e de quem não. quando tentei ler esse livro pela segunda vez usei a estratégia de levá-lo comigo a todo canto que eu fosse (no caso, fora de casa só à universidade). no intervalo de uma das aulas tirei ele da bolsa pra respirar. uma pessoa, sobre quem algumas impressões desconfiadas começavam a surgir, pediu pra que eu virasse a capa. virei pra escutar o comentário: "ah! bairrista". qual era a intenção eu nem sei. em alguns momentos josé teles fala sobre o desconhecimento do eixo rj/sp sobre o que é feito aqui no NE, mais especificamente em pernambuco. o foda é que eu também não conhecia muita coisa. que vergonha pra mim, essa bairrista ignorante. pero no más. foram cinco meses muito divertidos. boas companhias. boas histórias. muito material pra playlists. procurando as manguegirls, inclusive.


sobre sons da fala, um conto de octavia e. butler, reforço o que falei sobre a experiência que tive com o conto de ursula. mas, aqui, aumentada. mais uma vez a questão do tamanho. li alguns comentários de pessoas falando que o defeito da história é que não virou um livro. eu discordo.  caiu na minha cabeça como um livro de 500 páginas. como???? que potência na escrita, que sensibilidade. quando me propus a ler queria entender como eu funcionava enquanto leitora, mas octavia butler me convidou a pensar no que é ser gente. 



"o artista lida com o que não pode ser dito em palavras. o artista cujo meio é a ficção faz isso em palavras. o romancista diz em palavras  o que não pode ser dito em palavras." - ursula k. le guin

 

antes do a via crucis do corpo meus acessos aos contos de clarice lispector eram todos clandestinos e desordenados. o a hora da estrela tinha lido ainda na escola. fico pensando em como dependendo do ângulo os momentos podem ser convenientes ou infelizes. não sei se o incômodo que senti lendo algumas partes dos contos foi bem-vindo...porque me colocou num lugar diferente, novo, apesar do desconforto. quantas vezes ela fala de morte, de morrer. que mão boa. o encaixe do título é bizarro.

ler o castelo animado (diana wynne jones) com nandinha foi muito especial. escolhas espontâneas que acabam chegando num lugar de muito sentido. essa já era uma história presente no meu coração. porque é a preferida de marina. porque o filme é tudo o que é. mas o livro é diferente. são pontos tão importantes, que conseguem revelar com muita sutileza coisas nossas que negamos, mesmo inconscientemente. terminar o ano assim fez alguma diferença.

o queda de gigantes (ken follet) é mais um disponibilizado por nandinha. que leitura prazerosa! é por aí. essa leitura me fez desconfiar de que, pra mim, ler livros grandes é uma espécie de recalibragem. consigo perceber tudo o que me envolve numa leitura e o que não. também vou entendendo o meu tempo com o livro, e processo, com tranquilidade, o que ele me oferece. esse veio comigo pra 2021.



acho que manipulo minhas impressões sobre as leituras.

★ que 2021 seja mais honesto com a gente ★

Comentários

  1. Oi, Maria! ♥ Adorei a forma como você escreve e descreve. Quantas leituras fantásticas te acompanharam em 2020. Os seus comentários são muito inteligentes, fiquei com vontade de ler alguns dos títulos, como kitchen e úrsula. Acho que é a minha primeira visita por aqui, tô encantada com o seu espacinho. Um ótimo 2021 para você, um beijo enorme <3

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  2. eu não costumo fazer listas. só faço listas, com a minha própria letra, antes de ir ao supermercado - nem sempre! mas eu saberia fazer a lista dos meus álbuns musicais preferidos, e a lista dos filmes preferidos (muito tempo atrás até fiz essa lista no meu antigo blog) e dos livros de poesia preferidos. li poucos livros em 2020. na verdade, há algum tempo que escrevo mais do que leio. afirmas que não sabes fazer resenhas, mas a maneira com que escreves sobre os livros é atraente, desperta a curiosidade. "que 2021 seja mais honesto com a gente". que assim seja. e que sejamos honestos também. um beijo, Maria. :)

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