"sandy abra os olhos"
naquela hora em que a notícia de que titio tinha feito a travessia caiu seca no nosso peito, eu olhava pra um jim carrey confuso. não via aquele filme há anos. e nem sei como guardei essa lembrança. sabe quando a gente tá doente e come alguma coisa que desce mal e depois, de alguma forma, aquela comida se encarrega de trazer a memória, ainda que fisiológica, de um momento ruim na sua trajetória? pode ser isso.
a novela favorita de vovô era cabocla. parece que vejo ele sentado com as pernas esticadas e cruzadas em cima do sofá. e ele foi embora no quando o último capítulo foi transmitido.
no momento em que a vida se disfarçou de pausa mais uma vez, à noite, a cabeça fingia traçar planos focados na ideia de continuidade. descobri que era o último capítulo de floribella. achei suspeito, porque eu sempre disse que nunca mais veria o final. "só até o penúltimo". fazia tempo que tinha parado de assistir, mas naquele dia, por acaso, eu vi. vi fred desaparecer de novo. era uma apresentação daquilo que faz com que a gente precise acreditar com força que nossas conexões, e por isso também as nossas despedidas, podem acontecer à distância.
não digo quais são essas marcas e porque elas acontecem.
semana passada fez um mês de sustos horríveis quase simultâneos à tentativa obrigatória de conhecer uma e outra vez a verdade. a de que a existência de tio mike só acontece daqui pra frente através de ficções criadas por cada um que ficou. nunca mais a autonomia sobre suas narrativas. isso chega como uma verdade distorcida. ainda mais quando a história dele parece não encaixar ou compõe da pior forma aquele número que até arredondado pra baixo destrói tudo que a gente tinha construído, tentado construir, pra teimar em continuar vivendo.
a minha ficção é um livro de memórias manipuladas mal escritas.
tinha medo de que as pessoas continuassem indo embora dessa vida e que eu precisasse escrever um texto cheio de acréscimos, que acontecesse pra sempre...
fiquei em silêncio porque só queria abrir a boca se fosse pra dizer tudo. seria a minha última chance, tudo o que ele levaria de mim. essas versões desfalcadas.
e na minha frente, nítida, a imagem de quem somos, o esboço de como parecemos nesse momento. flashes de ondas em intervalos de tempo cada vez mais curtos nos deixando cada vez mais desnorteados. estamos exaustos. por isso não quis dar potência à raiva. mas temos todo o direito.
há alguns meses decidi que ver six feet under seria uma coisa que eu faria esse ano. hoje, de uma forma quase espontânea, vi dois episódios do meio da segunda temporada. rachel griffiths faz parte do elenco principal. lembrei dela em brothers and sisters, série que eu e mainha víamos juntas sempre que eu chegava da escola. já são dez anos.
talvez o meu anjo da guarda tenha articulado uma busca inconsciente minha por ajuda. numa ficção construída encarando a relação frenética entre vida e morte. tento me segurar onde posso.
hoje lembrei que o meu bairro é um lugar em que as pessoas sempre estiveram mais próximas quando ao redor de ausências.
lembrei de quando não consegui consolar a minha vó. no momento em que vovô ligou pra tentar dizer que o filho dela não ia mesmo voltar. quando ela chamou uma amiga e três dos seus netos pra rezar. e não conseguiu. eu não consegui. ela tentava se segurar onde podia. na vontade de deus. no tempo de deus. então, minha irmã segurou as mãos de vovó e rezou.
na quarta-feira, antes da missa, percebi que titio se tornou uma lembrança musical.
no começo do ano tive uma conversa com mainha no quintal de vovó. perguntei a ela porque em momentos de luto algumas pessoas costumam negar coisas simples, coisas que em cenários cotidianos oferecem saídas e a sensação de presença. a minha última memória de uma dor silenciosa era de dezessete anos. lembro de um contrato assinado mentalmente por todos nós. a partir dali escutar música compartilhando, ver televisão num volume um pouco mais alto ou ter uma atitude mais "expressiva", parecia errado. tudo o que estivesse relacionado a uma mudança brusca daquela atmosfera espessa. ela me perguntou: quando eu morrer tu vai escutar música assim? eu disse que não conseguiria sobreviver sem isso.
tá errado. agora vejo que o luto já não pode ser descrito, muito menos antecipado. é verdade que nunca pôde. acho que entendo a importância da existência do silêncio enquanto a falta assenta.
o meu violão tem me mantido pessoa há alguns anos. sempre ali pra quando preciso voltar pra cá. dessa vez não consegui nem olhar pra ele. um monte de gente dentro de casa, sem saber pra onde ir. vibrando energias caóticas que, com certeza, não se acertavam. uma vontade desesperada de manter o outro de pé e o desespero ao vê-lo desabar várias vezes num dia só. qualquer barulho mais alto parecia estremecer tudo por dentro. o silêncio também não era um refúgio. lembro de colocar os fones de ouvido e me despedir repetidamente enquanto escutava so far away, de carole king. por quê?
fico tentando entender como essas realidades assustadoras entrelaçadas violentaram nossas percepções. a manifestação involuntária de todas as nossas contradições. como a negação destravou tantas habilidades obscuras nossas. o tempo todo tentando me apegar ao que resta de uma espiritualidade distante que nem sei se ainda existe. tentando assimilar que nada é linear. pensando que trocaria uma consciência tranquila por tanta coisa. o que eu poderia ter feito? matéria e mente reconfiguradas a todo instante. até quando um corpo aguenta oferecer resistência?
com parágrafos desconexos consigo enxergar melhor o que tem dentro do meu coração. talvez amanhã eu possa dizer outra coisa.
foi o que eu disse naquela hora:
"morrer não cabe na história de titio. de um prenúncio de tantos rompimentos, o meu futuro tinha muito mais vida com tio mike.
meus sentimentos, Maria. perder alguém nesses tempos tá sendo muito difícil, mas em qual tempo não é?
ResponderExcluirfiquei muito emocionada com o seu escrito, ia e voltava até conseguir ler por inteiro por causa de vários trechos que me seguravam e demoravam a soltar. "tinha medo de que as pessoas continuassem indo embora dessa vida e que eu precisasse escrever um texto cheio de acréscimos, que acontecesse pra sempre... " minha vó se foi no ano passado, perdi a conta de quantas vezes escrevi sobre ela. inacabados, insuficientes. a vida continua seguindo e pessoas continuam indo embora, alguém que você conheceu, um alguém de outra pessoa. minha vó continua sem textos dedicados a ela. tenho várias coisas engavetadas e me perco, me nego, constantemente, "a minha ficção é um livro de memórias manipuladas mal escritas."
existe um certo peso em fazer o luto acontecer em voz alta, se presa pelo silêncio, mas o luto é não-linear, imprevisível (como tu bem disse), se manifesta de diferentes formas, várias e várias vezes. me nego a pensar que ele é passageiro, pois permanece na concretude da perda. gravar memórias é um processo e sinto no meu coração que é uma ótima forma de eternizar, mesmo que a gente não confie muito na memória. acho que tudo bem viver e ressuscitar nas lembranças e nos sentimentos que a gente teve. claro, isso sou eu falando, se sabe que não é assim que todo mundo funciona.
que o tio Mike descanse em paz, talvez ele esteja fazendo festa e amizades em outros lugares.
beijo, maria. forças e boas lembranças pra você e sua família.
como eu costumo dizer, nada é, tudo está. dos seres vivos à matéria inorgânica, tudo denuncia a passagem do tempo: existir é transmutar. Mike transmutou!
ResponderExcluirtantas coisas nesta tua postagem, Maria, que fica até difícil saber o que te escrever...
mas deixo escrito que me identifico com teus escritos.
Paulinho da Viola, Carole King, Patti Smith, Bob Marley... <3
um beijo. e sigamos!